quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Desumano

Chegando ao muro que dividia a propriedade da floresta nebulosa, onde figuras sinistras bruxuleavam durante o dia, o velho homem pôs, num movimento mecânico e analógico, o antebraço direito em posição horizontal e o esquerdo pesadamente na maçã do rosto. Os contornos esfumaçados, de contornos frágeis fizeram o velho homem, de um golpe, forçar as palmas das mãos sobre o topo do muro e saltar para o outro lado. À primeira vista, eram formas que se assemelhavam. Mas, avançando entre galhos secos, retorcidos, e folhas descoloridas, ele se viu numa clareira sinistra, fria, que parecia não pertencer àquela floresta de ligeira densidade. Era dia, a luz do sol penetrava timidamente por entre as árvores e o velho homem tentava, impacientemente, identificar nas folhagens ao seu redor as figuras que o tiraram de sua tranquilidadade ociosa, preguiçosa e solitária. Há alguns anos - quase trés decadas, diga-se - o senhor da floresta deixara o alvoroço da cidade para os ajudantes do sistema. Estruturas, convenções, padrões, isso tudo não era com ele. O velho não era exatamente do tipo subversivo. Apenas um descontente, um incapaz de conviver dignamente, educamente com seres humanos. Ele não se considerava parte da rede social, nunca teve família permanente, semeou pouquíssimas e temporárias amizades e sempre foi um insensível com as mulheres. Por isso, nunca se apaixonaram por ele e ele, em troca, nunca se apaixonou por ninguém. Claro. Chamavam-no de aberração, já que sociedade era-lhe um absurdo. Ele se sentou sobre uma rocha e ficou a refletir sobre as figuras que dali fugiram. Deveriam ser humanos que, alarmados por sua aproximação, trocaram a curiosidade por instinto de sobrevivência, como se o velho homem fosse, de fato, qualquer coisa de animal selvagem. Não, aquele homem nunca machucaria ninguém, por mais que a presença de qualquer semelhante a ele causasse-lhe um estranhamento agonizante, uma aversão insensível e inexplicável. Aquele desumano já há muito tempo desistira da humanidade.

2 comentários:

Hellen disse...

"Aquele desumano já há muito tempo desistira da humanidade."
Ótima frase. E ótimo texto, você tem uma forma de descrever muito intensa e precisa. E um tema também muito interessante... Apesar de todos contarmos com um pouco de sociedade, nem todos conseguem seguir essa "receita" que a sociedade nos coloca, que coloca em cada um formas de agir, pensar. Para a Sociologia, ou para Durkheim, especificadamente, o velho seria um egoísta (com um sentido diferente do que conhecemos). Para mim, alguém que se perdeu dentro de si.
Gostei bastante, um texto bonito, simples e que sucinta boas reflexões.

Felipe Moraes disse...

Poxa, fico lisonjeado, Helen!

;D