segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

2010 | livros

Desde maio não passo por aqui. Caramba.

2010 foi o ano mais importante e cheio da minha vida, e o blog saiu momentaneamente (ou semestralmente) da lista mental de prioridades/atividades.

Mesmo atropelado por estágio, monografia (plus três matérias que insistiram em me tirar do sério justo no último semestre da peleja), sinusite, infecção renal et al., ainda tive tempo de ouvir alguns discos, folhear alguns livros e ver alguns filmes -- 95% via torrent, o resto no cinema, é claro.

É isso. Começo pelos livros. Considero apenas os lançados no Brasil em 2010. Quer dizer: importados não estão valendo; mas estrangeiros vertidos para o português-br (como é bom diferenciar português-pt de português-br, não?), sim; isso é óbvio.


Nacionais

3 Zero - edição comemorativa 35 anos, de Ignácio de Loyola Brandão. Editora Global, 390 páginas

Não é um lançamento. Mas um baita relançamento que preciso mencionar. O romance caótico de José e Rosa é apenas um detalhe numa obra livre e absurda, proibida pela ditadura militar: o autor interfere na narrativa aqui e ali com inserções gráficas que traduzem os ruídos das ruas da capital paulista; cria um padrão de pontuação próprio; insere, entre os capítulos sobre o casal, manchetes jornalísticas, palavras de ordem do Estado, pequenas histórias (reais ou não) de mutações, violência urbana e repressão policial. É um livro ansioso, atônito, gritante, que ora exala ficção, ora realidade, num desequilíbrio que torna a leitura, a cada parágrafo vencido, uma experiência indecifrável. A edição traz um bônus gratificante: prefácio enorme com capas de edições anteriores e estrangeiras, e os bastidores da criação do título. Disfarçado talvez de erótico, Zero é um Trópico de Câncer pós-moderno, politicamente engajado e mais angustiante.

2 Eu vos abraço, milhões, de Moacyr Scliar. Companhia das Letras, 256 páginas

O novo título de Scliar, ambientado no Brasil dos anos 1930, é uma jornada sentimental e política mais interessada na evolução de seus personagens do que em veracidade histórica. Valdo deixa o Rio Grande do Sul após experiências inebriantes com as ideias comunistas: do amigo Geninho, levou para o Rio de Janeiro livros marxistas e um espírito revolucionário, à procura do líder do partido, Astrojildo Pereira. Mas lá, vira refém da sobrevivência, e se vê na condição de assalariado -- figura central da revolução. E, ainda por cima, com um emprego indesejável para um crítico da religião: ele é convocado para participar da construção do Cristo Redentor. Scliar é preciso no tom melancólico da narrativa, organizada como se Valdo estivesse contando a história de sua vida a um neto que mora nos Estados Unidos. Uma vida que, apesar da agitação proporcionada pelos eventos políticos, é simplesmente (e fragilmente) humana.

1 Cidade livre, de João Almino. Record, 204 páginas

O livro de Almino nos coloca diante de deliciosos detalhes históricos, acompanhados de belas descrições, e nos engana o tempo todo, desvelando a memória de personagens ficcionais -- gente que participou ativamente do sonho chamado Brasília. O escritor controla a narrativa com leveza, sem a preocupação de separar com evidência o real do ficcional. -- mais do que um mérito, uma habilidade. Estende-se em parágrafos longos, mas nunca repetitivos, e escreve uma "ficção da história" -- se é que isso de fato existe -- que parece tão nobre quanto as experiências dos "reais" candangos. A ficção, aqui, ganha um ar de eternidade. João (o personagem) começou a contar a história da Cidade Livre (hoje Núcleo Bandeirante) num blog e foi incentivado, por Almino, a organizá-la em livro -- uma brincadeira do autor consigo mesmo. O pai, Moacyr, registrou informações -- até mesmo famosas citações -- num caderno chamado Avante. À beira da morte, Moacyr conta a João, em sete noites, a criação da capital do país. Se Brasília é uma ficção que se tornou realidade, Cidade livre é o seu romance definitivo.


Estrangeiros

3 Bilionários por acaso: a criação do Facebook, uma história de dinheiro, sexo, genialidade e traição, de Ben Mezrich. Tradução: Alexandre Matias. Intrínseca, 232 páginas

Livro que inspirou o filme A rede social, de David Fincher, um dos melhores do ano e talvez favorito ao Oscar. A prosa sedutora de Mezrich é quase , de fato, um roteiro para cinema, com diálogos frenéticos e carregadas descrições. Mark Zuckerberg, que se recusou a ajudar no livro/filme, é um geek levemente psicopata, avesso a encontros sociais. O melhor amigo, Eduardo Saverin, um nerd mais descolado -- para não dizer yuppie. Numa travessura à lá Bill Gates -- Mark prometera ajuda aos gêmeos Winklevoss para a criação de uma rede social e acabou criando uma para si --, o sujeito mais estranho de Harvard criou um site de encontros que estimula o encontro entre conhecidos de conhecidos, ou amigos de amigos, ou as combinações entre as duas esferas. A escrita do código que organizaria tanta complexidade começou numa noite gelada, Mark sentado à mesa com notebook e pc ligados, alternando digitação e goles de cerveja. Foi assim que ele resolveu a tristeza de ter sido dispensado por um garota. Um gênio. Ou um traidor? Saverin, co-criador que garantiu a sobrevivência do site na rede com dinheiro do próprio bolso, preferiu Harvard à uma mudança para a Califórnia, como queria Zuckerberg. E Mark, friamente, distribuiu as ações do (ex) amigo aos novos investidores. A não-ficção de Mezrich, inspirada em centenas de páginas de processos judiciais e entrevistas, recusa-se a julgar Mark. Mas venera o legado do Facebook.

2 A vida secreta das árvores, de Ram Singh Urveti, Bhajju Shyam e Durga Bai. Tradução: Monica Stahel. WMF Martins Fontes, 44 páginas

As gravuras e textos de três dos principais artistas gondes (tribo no centro da Índia), publicados originalmente pela editora indiana Tara Books, têm algo de fantasmagórico e deslumbrante. Enquanto durante o dia a sombra gostosa e frondosa serve de abrigo e fornece conforto a animais e homens, à noite, os troncos são incorporados por espíritos lendários e contam narrativas folclóricas. Impresso em papel feito à mão, em serigrafia, o livro é um objeto de arte: dá até pra sentir o cheirinho de folhas úmidas e ouvir o sussurrar noturno de galhos agitados. A vida secreta é uma experiência completamente orgânica, uma peça artesanal que praticamente inexiste no mercado editorial.

1 A máquina de Joseph Walser, de Gonçalo M. Tavares. Companhia das Letras, 168 páginas

Joseph Walser é homem neutro. Presta serviços pesados na indústria em que trabalha, operando uma máquina. E tem um fetiche: coleciona pequenas peças metálicas e as cataloga minuciosamente, num quarto secreto. É oprimido pelo chefe e quase intocado pela esposa. Num deslize, sofre um acidente e perde um dedo. A guerra invade a cidade. E Walser continua neutro. Trabalha, coleta artefatos para a coleção, e joga dados com os amigos aos sábados. Tavares, num temperamento kafkiano, escreve com absurda economia de palavras, em capítulos curtos, um tratado cru, angustiante sobre a relação entre homem e máquina. Walser não dá uma palavra, não diz uma frase. Mas não é mudo. O seu silêncio fala. A sua neutralidade é sabedoria. (Não vejo a hora de ler os outros três títulos da tetralogia O reino, série dedicada à maldade.)

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