sexta-feira, 19 de junho de 2009

A parada

(Favor, ler o texto tendo ao fundo esta música: Starálfur, do Sigur Rós)

Cidadela em polvorosa: é o segundo domingo daquele mês, dia de parada. Oficiais da polícia exibem orgulhosamente seus fuzis e cães raivosos, escolas públicas e particulares apresentam alunos de semblante enfeitado, untado de uma tinta desbotada pelo sol forte e vigoroso. Sob nuvens de tamanhos imensos, geralmente raras em dias ensolarados como aquele, o ar que pairava sobre os desfiles estava invadido por papéis picados, coloridos e levava a todos os cantos da cidadela o som estridente da banda do exército. As calçadas semiconcretadas eram pisoteadas por famílias inteiras, enquanto aquela pequena epopéia regional pulava de esquina e esquina, retirando de todas as casas até mesmo homens e mulheres de mais idade, que com serenidade assistiam àquilo tudo com muita solicitude. Como que de mãos atadas por uma prazerosa insatisfação, desligado da epifania a qual a cidadela gozava, jazia num dos bancos da praça, deitado preguiçosamente, um esguio garoto. O dia de sol o permitia estar apenas com uma bermuda bastante simplória e um par de sandálias gasto, porém de aparência resistente: só poderia ser trabalho de artesão. Ele estava lá desde a manhã daquele domingo, desde o início da parada. O movimento infinito do sol sinalizava que faltavam ainda algumas horas até o entardecer. A parada acabaria quando do crepúsculo daquele porvir fim de tarde. O menino estava com os braços entrelaçados sob o cabelo macio e despenteado, encarando o azul límpido do firmamento e tentando talvez decifrar figuras conhecidas em meio à automodelagem insólita das nuvens. A parada que ressoava nas ruas em torno da praça não interessava ao esguio. A ele a experiência de presenciar atenciosamente o vai-e-vem dos grandes blocos disformes de vapor d'água condensado era muito mais sublime que o singelo e efêmero desfile dos humanos. O garoto, socialmente enquadrado na condição de mendigo, escória, era simplesmente um sortudo, por não partilhar da domesticação familiar, do cerceamento criativo imposto pelas escolas e da internalização de valores das instituições sociais, cargas impregnadas em todas as crianças daquela humilde, mas integrada, coesa cidadela. Como um espírito livre, inadequado, arredio, enfim, marginal, o magro, esbelto e de beleza selvagem assistia a verdadeiras paradas celestes todos os dias.

5 comentários:

Anônimo disse...

Tens um poder de narração incrível Felipe. Gosto da descrição aguçada, da beleza do texto. Quando irá escrever um livro? :)

Muito boa ideia a de mostrar-nos que o que teoricamente seria uma condição social menor - julgada por muitos como pior - acaba por tornar-se algo bonito.

Felipe Moraes disse...

Agradeço pelos elogios, Jaime!

Um livro? Ainda não tenho maturidade pra isso... Ainda não.

Abraço,
Felipe Moraes

... disse...

Opa, eis que te digo "esse texto foi um marco!" heheheheeh

te repasso tudo ao vivo!

(kd a possibilidade de fazer login pelo wordpress?)

Luara Quaresma disse...

"O menino estava com os braços entrelaçados sob o cabelo macio e despenteado, encarando o azul límpido do firmamento e tentando talvez decifrar figuras conhecidas em meio à automodelagem insólita das nuvens." - Essa intensidade me encanta!

Felipe Moraes disse...

Nossa, gente, obrigado!

=D