domingo, 31 de janeiro de 2010

Tarkovsky e a Enfermaria nº 6

Há pouco tempo vi meu primeiro filme do russo Andrei Tarkovsky, Zerkalo (O Espelho), considerado pelos críticos o mais autobiográfico do realizador. Pois bem, é uma obra de visual deslumbrante que tem muito a dizer sobre a relação do homem com a memória -- contato este que, dados os possíveis demônios enfrentados na infância, pode se dar de maneira violenta. E Tarkovsky como que exorciza o abandono do pai e a frieza afetiva da mãe, evidenciados na trama. Hipnotizante e construído à maneira como "editamos os nossos sonhos", desordenadamente, Zerkalo é desses filmes que causam estremecimentos a cada revisita -- mesmo que o rever se dê apenas pelo resgate mental da experiência fílmica.

Logo no início, há um diálogo entre um médico e uma mulher, numa região isolada da cidade. Já de saída, o médico mostra certa angústia ao dizer que as pessoas não tem mais tempo para pensar nas coisas da vida, perseguir o autoconhecimento, ao contrário das plantas, que vivem livres do trabalho e das banalidades da vida. A mulher indaga a respeito da Enfermaria nº 6, conto de Tchekhov comentado aqui há poucos posts. Com ar levemente embotado, o médico responde que pensamentos como esse não o afetam porque, afinal, ele é médico e a penosa situação de Andriéi Iefímitch, o doutor do conto, é apenas uma criação de Tchekhov. Iefímitch vive um verdadeiro inferno existencial e desacredita na utilidade da própria profissão (bem como da vida), ao conhecer a insensibilidade e o egoísmo da sociedade da qual faz parte. Talvez por presenciar o sofrimento alheio diariamente, o médico do filme adquiriu uma maneira, ainda que desumana, de enfrentar seus próprios demônios.

Como se sabe, Tarkovsky não é médico nenhum e encontra o bálsamo para o seu mal de outra maneira.

Um comentário:

Luara Quaresma disse...

Gostei demais desse filme tb.
Sureal.